..::I d e o l o g i a S u b j e t i v a::..

Saturday, July 15, 2006

Colecionador

Bom, sem comentários...se vocês tiverem paciência de chegar até o final vão saber que esse texto fala por si mesmo. Não precisa de apresentações...rs.
Colecionador
Teach me to love?
Go teach thyself more wit
I, chief professor, am of it
The god of love, if such a thing there be,
May learn to love from me*

(Abraham Cowley)

Nomes? Ahhhh...não vamos falar de nomes. Para que eles servem? Para tentar resumir em uma única palavra insignificante tudo o que somos? Toda a complexidade que envolve o ser humano em apenas um nome? Não, isso é impossível. Portanto, vamos abandoná-los. Que tal tratarmo-nos somente por “você” e “eu”? Muito melhor, nos torna mais...íntimos, não acha?
Falemos do que somos. Quem é você? O que você odeia? O que você ama? Do que gosta? Algum passatempo preferido? Bom, vejo que gosta de leitura, senão não daria atenção a essas palavras sem importância. Ah, percebo um sorriso: seria uma concordância? O que eu digo ou escrevo tem importância para você? Ótimo, meu plano está funcionando perfeitamente. Você sabia que as palavras tem o incrível poder de seduzir as pessoas, subjugá-las? Então, pasme! Estou fazendo isso com você nesse exato momento.
Vejo que te surpreendi...mas esse é o meu passatempo: eu seduzo. Conquisto. Envolvo até ter o poder em minhas mãos, até saber que há alguém que depende totalmente de mim. Sabe, isso é divertido. Ver mulheres tão seguras e donas de si rastejarem aos meus pés, implorando por amor. E quanto mais difícil a conquista, mais engraçado é: o gosto do desafio só perde para o da vitória final. Porque sim, isso é uma competição, uma batalha onde vencedores e perdedores são almas e corações.
A estratégia requer precisão matemática. Saber esperar pacientemente pelo momento certo, agir no silêncio, olhar, sorrir. Conversar um pouco. E, lentamente, sem nem ao menos perceber, há uma rendição completa. Aí sim é hora de agir: telefonemas, flores, bombons, encontros, toques sutis, beijos, e fim, nessa ordem. Para que mais, não é verdade?
Ah, pela sua reação, você não gosta disso...prefere o sentimentalismo, não é? O amor vendido pelas novelas, eterno, feliz e incondicional. Isso não me espanta, é algo tipicamente feminino, e que eu adoro! Mas quem disse que não há sentimento? Em cada caso há paixão. Paixões que podem durar um centésimo de segundo ou um milênio, que me importam? O que importa é o momento, é o instante, ínfimo que seja, em que há reciprocidade. Em que eu sou amado e amante. Em que fecho os olhos e me levo por algo maior que eu. Vê? Eu conheço o poder dos sentimentos. Não me tome por insensível: se você tivesse a oportunidade de me conhecer um pouco melhor veria que eu não sou assim. Que tal a proposta?
Sua face está ficando vermelha: eu a intimido. Essa cor rosada em suas bochechas dá a você um aspecto tão particularmente lindo, como as deusas das pinturas de Boticelli. Ah, agora você sorri. Mencionar alguma musa inspiradora sempre tem um efeito devastador. Percebo que você está quase chegando no ponto que eu quero. O que falta é tirar esse medo que eu vejo em seus olhos, o medo de ser só mais uma em minha preciosa coleção de amores eternamente efêmeros.
Ah, as mulheres...não são capazes de entender que ser inigualável não é ser única. Cada uma tem seu próprio brilhantismo, seu próprio valor. Umas mais, outras menos. Mas eu, como colecionador que sou, não quero somente uma jóia. Quero o maior número possível. Amo-as, como se fosse a mim mesmo, cada uma na mesma proporção de seu próprio mérito. A diversidade é realmente uma benção, diz qualquer antropólogo que você encontrar por aí. E eu concordo com eles.
Eu posso adivinhar seu olhar inquisitivo nesse momento, me perguntando silenciosamente qual seria o seu valor. E eu responderia, olhando no fundo dos seus olhos, que você é a pedra mais preciosa do meu conjunto. E, por incrível que pareça, você acredita. Sua crença acaba com todo o medo, e você tem certeza que eu vou mudar, e que vou te amar para a vida inteira. E é bom que seja assim. A ilusão é minha aliada. Permita-se ser iludida e você verá que a mágica que ela produz é verdadeiramente bela. Eu garanto.
* “Ensinar-me a amar?/ Vá ensinar crianças a brincar/ Eu, nisto, sou mestre e professor/ O deus do amor, se tal existir/ Aprenderá a amar comigo”

Tuesday, July 04, 2006

Confissão

Porque inspiração às 0:15 da madrugada ninguém merece...
Confissão

Nunca o silêncio e a penumbra tinham sido tão reconfortantes. Sempre teve medo da escuridão, mas agora ela era providencial. Medo, naquele momento, só sentia de si mesmo, do que havia feito. Havia se transformado em algo que não conhecia, e que era abominável.
Caminhou a passos lentos pelo corredor principal, em meio a duas fileiras de bancos vazios. O olhar quente por tantas lágrimas, mas seriam de arrependimento? E perguntou-se por um momento o que estava fazendo ali. A luz das velas criava sombras estranhas, que dançavam em meio ao infinito negro, recriminando-o, julgando-o, condenando-o. Parou no meio do corredor. Queria voltar, não sabia de onde tinha vindo a idéia absurda de ir a uma igreja naquela hora da noite. Naquela noite. Mas sentiu que precisava de conforto, precisava acima de tudo confessar o que tinha feito. As lágrimas não tinham fim, os soluços ecoavam pelas paredes e iam até a nave central, e o faziam perceber o quanto estava sozinho. E decidiu continuar a sua caminhada para o altar, ainda com as pernas tremendo e o rosto vermelho do choro, da excitação, da raiva e da vergonha.
Deixou que seus joelhos se dobrassem automaticamente, tombando, cansado. Enterrou a cabeça por entre as mãos, e mais lágrimas vieram, descendo copiosas pelas bochechas já úmidas. “Senhor” - começou, em voz alta - “não sei o que estou fazendo aqui. Não sei rezar, não tenho sequer coragem de levantar os olhos. Mas preciso dizer que matei, Senhor, matei duas pessoas que eu amava e que me traíram, e que tento, mas não consigo me arrepender, faria tudo da mesma forma de novo. Será que sou um monstro? Será que fiquei louco?” - e finalmente levantou os olhos em direção à imagem, buscando respostas. “Será que devo me entregar à polícia?” - e silêncio.
“Senhor, porque ela fez isso comigo? Se ela não me amava, porque não me disse? Se ela amava outro, porque não me falou? Talvez ela me conhecesse melhor do que eu mesmo e soubesse da minha reação...mas e o outro? Ele era meu melhor amigo! Crescemos juntos, estudamos juntos...céus, como ele pôde? E eu sofro, Senhor, sofro porque perdi as pessoas mais importantes da minha vida. E ao mesmo tempo eu rio, porque eles tiveram o que mereceram. Qual desses sou eu? Qual desses prevalece? Não saber me corrói por dentro!”
Respirou fundo. As lágrimas deram lugar à apatia, ao olhar vago típico das grandes batalhas internas. A boca começou a ficar seca. Mas ele continuava ali, imóvel, o olhar fixo na imagem que o observava com complacência. Sentiu-se mais cansado do que nunca: sua cabeça doía, seus joelhos já não suportavam mais. Ainda assim, permanecia inalterável, e sua imobilidade integrava-o àquele ambiente de estátuas santas e suas sombras flamejantes. Por mais paradoxal que possa ser, formava com elas uma simbiose. Mais confortável, recomeçou, com um susurro: “Mostre-me quem eu sou. Não permita que eu viva sem saber quem eu sou. Não permita que eu viva sem saber quem eu sou...”. E à medida em que repetia essa frase, se sentia melhor.
Começou a sentir um pouco de falta de ar, mas atribuiu ao cansaço. Desfez o nó da gravata, e por um momento respirou melhor. Mas já no segundo seguinte, o ar lhe escapava novamente. Sentiu-se mais e mais sufocado, mas nem assim parou de repetir sua súplica. Quando finalmente percebeu o que ia acontecer, sorriu. Os olhos vermelhos e agradecidos voltaram-se para a imagem. “Obrigado”, disse, e tombou para frente, com o corpo já inerte.
Uma lágrima, suspensa, caiu, e foi de encontro ao mármore frio do altar. Não houve tempo para dizer “Amém”.